4. Dito isto, é preciso perceber, com rigor, o que propôs o Governo:
- Um perdão de penas (1) aos reclusos condenados por penas de duração igual ou inferior a dois anos e ainda (2) aos reclusos aos quais faltem apenas dois anos para cumprimento integral da pena (independentemente da duração desta);
- Um “indulto excecional” nos termos do qual se permite, ao Presidente da República, indultar os reclusos que se integrem nos grupos de risco, isto é, maiores de 65 anos e “portadores de doença, física ou psíquica no contexto desta pandemia”.
Para ambas as situações, excecionam-se aqueles que tenham sido condenados por crimes de maior gravidade, como homicídios, crimes de natureza sexual, entre outros.
5. Daqui resulta que o Governo vai perdoar penas a um conjunto alargado de reclusos sem nenhum critério relacionado com a covid-19. Todos aqueles que serão libertados por aplicação direta do diploma são-no por critérios temporais (penas até dois anos ou de que falte cumprir dois anos). Por outro lado, o Governo deixa ao Presidente da República o ónus de proceder à libertação daqueles que efetivamente interessaria tirar da cadeia; os que integram os grupos de risco.
6. Esta opção legislativa é demonstrativa de uma desconsideração institucional. Por um lado, porque sendo o indulto uma competência própria do Presidente da República, o diploma assume um claro imiscuir nas funções do chefe de Estado, balizando e condicionando a decisão de concessão de indulto, que deveria seguir – apenas e só – os seus critérios. Por outro lado, todas as declarações da ministra da Justiça assumem os números de reclusos a indultar pelo Presidente como um facto consumado, como se se tratasse de um simples ato administrativo e o Presidente o seu mero executor. E ainda porque, objetivamente, a opção do Governo constitui uma espada de Dâmocles sobre o chefe de Estado.
7. Como sabemos – e o Governo também sabe – o instituto do indulto tem critérios contidos e sensatos, não sendo a figura adequada à libertação de centenas (talvez mais de um milhar) de prisioneiros. Por isso, impõe-se, uma pergunta: E se o Presidente da República tomar a decisão normal e não indultar “a torto e a direito”?
8. Ora isto revela o maior absurdo deste diploma! Porque se o Presidente da República cumprir com a filosofia subjacente ao instituto do indulto, vão ser libertados ao abrigo do diploma milhares de prisioneiros que nada têm que ver com a covid-19, fazendo com que permaneçam nas cadeias aqueles que se justificava que saíssem. E o pior é que o Governo toma esta opção bem sabendo que dificilmente poderá o Presidente atribuir indultos a centenas de prisioneiros. Na prática, o Governo guardou o indulto para si, deixando para o Presidente a retirada da cadeia daqueles que se impunha como decisão da AR e do Governo.
9. Precisamente por isto é que o PSD, na sua proposta, fazia com que fosse o Governo a assumir a libertação dos prisioneiros que integram os grupos de risco (não sob a forma de perdão de pena mas sob a forma de prisão domiciliária, em substituição da prisão efetiva), deixando o instituto do indulto ao critério exclusivo do Presidente. Sem balizas nem condicionamentos.
10. Isto já para não falar no atropelo absoluto ao funcionamento da Justiça. Proponho que leiam as palavras da ministra da Justiça: “Portugal é um dos países da UE com maior taxa de encarceramento por 100 mil habitantes. Somos o segundo país com penas mais longas da Europa”. Creio não restarem dúvidas de que o Governo exerce um juízo moral sobre as decisões judiciais e pretende um controlo a posteriori sobre o que elas implicam, trazendo-o para números que considera normais. Com um só diploma, reduzem-se os órgãos de soberania a apenas a dois: Governo e Parlamento.
11. Com esta postura legislativa, o Governo alega “evidentes razões humanitárias” mas mantém os grupos de risco dentro das cadeias. Tudo isto demonstra à saciedade que esta iniciativa, de facto, não promove uma atuação humanitária … mas, sim, uma redução arbitrária.
Artigo publicado originalmente no Público.